sábado, 4 de julho de 2009

A terapeuta da fala.

Ela tinha um sorriso brilhante. Uma face selvagem mas dócil para quem a conhecia. Ela é
jovem, ama o mar como nenhuma outra mulher. Numa manhã, ao acordar naquele quarto
com janela para o mar, sussurrou ao vento que gostava de viver livre para sempre como os
golfinhos que habitam as águas do oceano profundo e azul.
Ela nasceu numa ilha no meio do Oceano Atlântico, daí a sua paixão pelo mar. Mas não
julguem que não gosta da terra onde nasceu. Contudo, ela sabe que não pertence a lugar
nenhum. É independente e possui uma liberdade interior que faz os outros se sentirem
prisioneiros a preconceitos e a juízos de valores preconcebidos pela sociedade. Ela, por sua
vez, apenas sente uma única prisão: a sua ligação eterna ao mar profundo e azul da sua ilha
amada que a viu nascer.
Certo dia veio para o continente estudar. Quer ser terapeuta da fala. Sente o chamamento
interior em ajudar os que têm dificuldade em comunicar. Curioso esse sentimento para
quem é tão reservada. No entanto não existe qualquer contradição, pois dentro de água
liberta-se junto dos animais de grande porte (como cachalotes, golfinhos e até baleias)... é
nesse mundo que gosta de viver e comunicar, mas sabe que é humana e necessita de ajudar
os outros que não possuem esse privilégio.
Certo dia conheceu um pequeno rapazinho que possuía uma ligeira dificuldade em dizer
os “R´s” e isso a tocou da forma mais profunda que possam imaginar, pois queria que esse
pequeno e tenro menino um dia crescesse e conseguisse admirar o mar tal como ela o faz. A
sua tese consiste na tradução das coisas que mais gostamos e admiramos em palavras, sendo
essa a forma de nos mostrarmos ao mundo como somos e aquilo em que acreditamos.
Neste momento ela terminou o seu curso e licenciou-se. Hoje é terapeuta da fala, ou melhor,
da comunicação, tal como defende, pois acredita que a comunicação é muito mais. É não
só ajudar na recuperação de uma fala fluida e que todos possam perceber, mas também a
única forma que um ser humano possui em demonstrar as suas sensações e aquilo em que
de facto acredita. Segundo ela, isso deve ser passado da forma mais transparente aos outros,
tal como uma baleia o faz no momento em que chama a sua cria para junto de si, e a alerta
para os vários desafios daquele oceano profundo e azul que rodeia a ilha onde nasceu.
Ela tem um sonho, algo que não diz a ninguém, talvez porque cuida muito bem das palavras
e não as utiliza em vão devido ao seu conhecimento. O seu sonho mais profundo é um
dia conseguir comunicar com a baleia que mergulha todos dias nos seus sonhos mais
intensos.
Acreditem que no dia em que conseguir transmitir o que sente por estes seres divinais de
uma forma articulada e com um som transparente como as águas que rodeiam a sua ilha,
nunca mais irá conseguir regressar a terra firme e por lá irá ficar, naquele oceano profundo
e azul.
Mas não será para já. Agora faz falta em terra para ajudar muitos meninos e meninas,
homens e mulheres, a conseguirem demonstrar por palavras o que lhes vai na alma. Quando
conseguir ajudar a todos, então esse será o seu primeiro dia eterno dentro daquele oceano
profundo e azul. Nunca mais irá voltar, ficando na memória de todos os que ajudou como
uma deusa, e esses serão os profetas desta nova deusa que irá nascer – A deusa da fala. A
mulher que conseguiu colocar nos olhos de uma criança o brilho de um pirilampo quando
comunica com os seus pais da forma mais fluida, como a brisa pela manhã junto do mar. A
deusa que todos os surfistas irão respeitar em dias de vagas azuis como braços demolidores
junto da costa. A deusa da comunicação marinha que fará com que, pela primeira, vez um
ser humano consiga comunicar com uma baleia.
Mas para ser deusa tem de existir um mito, e para existir um mito terá de existir um
pergaminho há muito perdido. Este deve estar selado numa garrafa de cerâmica cosida
pelos fornos de Saturno e que viajou durante muitos e muitos anos pelo oceano e um dia
um pescador da sua ilha a irá encontrar. Quando retirar a garrafa das suas redes, estarão
escritas as treze formas de comunicar com todos os seres marinhos, incluindo o mar. Na sua
assinatura constarão apenas duas letras: um “T” e um “E”, mas será sempre conhecida por
todos os habitantes desse oceano profundo e azul como a “Piripin”.
E nesse mesmo dia, quando o mundo ficar a conhecer este nome, o tal rapazinho que
possuía dificuldades na fala, hoje um simpático velho e lobo do mar, irá sorrir e, com algumas
lágrimas salgadas naquele rosto queimado pelos longos anos expostos ao sol junto do mar,
saberá não só dizer correctamente a palavra, mas também será o único conhecedor do
significado da mesma.